Religião é um assunto recorrente nas revistas sobre ciência, como a SUPERINTERESSANTE ou a Globo Ciência. E o segundo tópico preferido é a Bíblia (o primeiro é Jesus, como eles sempre descobrem coisas novas sobre Jesus que vai mudar a forma como vemos o Filho de Deus e blá, blá, blá). Nesse mês de Dezembro, a SUPER se lança no desafio de definir quem escreveu a Bíblia. E como em todas as outras reportagens sobre religião (especialmente o Cristianismo), promete “mudar sua maneira de ver as Escrituras”.
Um bom resumo desse artigo diz no final das contas a Bíblia não foi escrita por quem acreditamos que foi, ela é muito mais recente do que imaginamos, ela foi alterada várias vezes a bel prazer do teólogo de plantão e mesmo nas traduções, encontramos erros e divergências. E para coroar todas essas afirmações a reportagem termina com a seguinte declaração: “Hoje, os principais estudiosos afirmam que a Bíblia não deve ser lida como um manual de regras literais – e sim como o relato da jornada, tortuosa e cheia de percalços, do ser humano em busca de Deus. Porque esse é, afinal, o verdadeiro sentido dessa árvore de histórias regadas há 3 mil anos por centenas de mãos, cabeças e corações e corações humanos: a crença num sentido transcendente da existência” (enfase acrescentada).
Quando fazemos evangelismo, sempre nos deparamos com esse argumento: a Bíblia é um livro escrito por homens; ela está cheia de contradições; está cheia de erros; ela foi manipulada; adulterada... o que você faz nessas situações? Como responder a essas objeções? Você sabe defender sua fé nas Escrituras como revelação de Deus para o homem?
Pretendo apresentar de forma sucinta nesse post a razão de nossa fé nas Escrituras como Palavra de Deus em comparação com o artigo da SUPER. Essas informações sempre me são úteis nos evangelismo. Espero que também seja útil para você. Vamos lá.
Toda vez que vamos abordar algum assunto, sempre partimos de um pressuposto. É impossível alguém iniciar uma pesquisa se dizendo neutro. Por mais que muitos aleguem isso, sempre temos um pressuposto. Eu iniciei esse post com um pressuposto: a Bíblia foi escrita por Deus e é verdadeira em suas afirmações. Portanto, todo esse texto vai trabalhar nesse sentido. Isso quer dizer que eu vou manipular os dados? Não, mas demonstra que eu tenho um pressuposto. A reportagem da SUPER também parte de um pressuposto: a Bíblia foi escrita por homens e manipulada durante os anos. Assim, informações em contrário acabam sendo ignoradas e o foco acaba sendo tudo aquilo que pode confirmar esse pressuposto, mesmo não fazendo sentido algum. Todos possuímos um pressuposto, só não podemos manipular a verdade em prol do mesmo.
O artigo começa questionando a autoria dos textos, de uma forma diferente da que defende a igreja. Na verdade, ao invés de possuírem um autor definido e identificável, na maioria das vezes, o Velho Testamento deriva de lendas de vários povos em Canaã. Como exemplo citam a lenda de Gilgamesh, uma lenda sobre o diluvio, bastante parecida com a historia de Noé. Afirmam que a lenda de Gilgamesh deu origem a história de Noé. Mas algo que eles falham em perceber é que em critica literária, quando duas historias são parecidas, via de regra a mais simples é a mais antiga. Quando se compara as duas lendas, percebe-se nitidamente que a de Noé é mais simples e a de Gilgamesh mais complexa. É muito mais provável que a versão bíblica seja mais antiga.
A autoria de Moisés para todo o Pentateuco é questionada no artigo. A principal razão para isso é que aparentemente existem vários estilos dentro do texto mosaico, por exemplo, em alguns momentos Deus e chamado de Javé e em outros de Elohim. Alem disso, o texto apresenta um monoteísmo que não existia na época de Moisés e um sistema legislativo incompatível com a época Por isso, acreditam que esses textos foram escritos em 4 períodos diferentes, todos muito depois de Moisés. Essa é uma teoria antiga, que recebeu seus toques finais por Julius Wellhausen em 1895. É chamada de Hipótese Documentaria ou hipótese JEDP e ainda hoje é muito aceita, sendo citada no artigo como consenso. Na verdade essa teoria como um todo parte de um pressuposto que sem o mesmo, toda a teoria entra em colapso: não houve revelação divina, Deus jamais implantou o monoteísmo e jamais falou com Moisés. Alguns pontos que não são considerados pelos defensores dessa teoria:
1- Não existe nenhuma prova documental que sustente essa teoria, ela é baseada única e exclusivamente em especulações Não existem manuscritos, relatos, absolutamente nada que possa levar a considerar essa hipótese como verdadeira.
2-Mesmo entre os autores dessa teoria existe uma enorme dificuldade de se definir qual texto pertence a qual dos autores, pois baseia-se em algo totalmente subjetivo. Hora parte que é considerada jeovista, hora é considerada eloísta.
3-A grande maioria dos achados arqueológicos do últimos seculos demonstra que o autor do Pentateuco possuía um grande conhecimento da cultura da época de Moisés Por exemplo, achados sobre a cultura dos heteus mostram que o relatos de Gênesis 23 são verdadeiros e somente alguém que teve contato com os heteus poderia ter tamanho conhecimento. Os heteus ainda estavam perambulando por aquela região na época de Moisés
4- Sabe-se hoje em que o monoteísmo é muito mais antigo do que imaginávamos. Achados arqueológicos datam os primeiros movimentos monoteístas para a época de Moisés.
5- A descoberta de varies códigos legislativos até anteriores ao mosaico demonstra que é totalmente plausível o desenvolvimento das leis conforme no Pentateuco.
6- Moisés declara autoria do texto (Exo 17:14; Num 33:2) e Jesus também afirma que Moisés escreveu a Lei (Mat 8:4).
Nenhum dos fatores acima é levado em consideração pelo artigo. Um outro motivo apresentado para negar a autoria mosaica é que Deuteronômio descreve a morte de Moisés e todos concordamos que ele jamais poderia ter escrito essa parte. Por isso o artigo descarta a autoria de Moisés de todo o texto. Com certeza outra pessoa escreveu essa parte, provavelmente o autor de Josué. Mas isso não é razão suficiente para negar a autoria mosaica. O parágrafo seguinte diz que a crueldade aparente de Deus no Velho Testamento é devida as lutas que os autores bíblicos enfrentavam com povos vizinhos, ele estavam "extravasando sua angústia". Aqui o grande problema é uma visão distorcida de quem Deus é. Deus se apresenta como amoroso nas Escrituras mas esse não é seu maior atributo. Repetidas vezes Deus declara que Ele é justo e não tolera o pecado e que irá julgar a humanidade. Quando Deus mandou Israel aniquilar os povos vizinhos, Ele estava agindo com justiça sobre esses povos, pois eram pecadores. A bondade de Deus se revela ao homem na pessoa de Jesus Cristo. Isso poucas pessoas querem entender.
Com a finalização da cânone hebraico, inicia-se a formação do cristão Uma coisa para que achei engraçada no artigo foi o comentário do teólogo Paulo Nogueira para a motivação que levou os cristão a escrever o Novo Testamento: "os cristãos queriam compreender suas origens e debater seus problemas de identidade". Fico imaginando pobres cristãos pensando sobre sua identidade mau formada enquanto aguardavam para serem devorados pelos leões! Não, grande parte do Novo Testamento foi escrito para defender o cristianismo de heresias que estavam se infiltrando na igreja. Isso não é debater sua identidade, mas defender os ensinos que Deus revelou através dos apóstolos. Eu acredito plenamente que uma pessoa que tem coragem de morrer por suas crenças, morrer uma morte terrível, já tem sua identidade bem formada. Mais uma vez, o pressuposto de que a Bíblia não é uma revelação de Deus, mas simplesmente um livro escrito por homens determina todas as conclusões neste artigo.
Uma alegação muito comum sobre o Novo Testamento é que, já que não possuímos os originais dos autores bíblicos, as copias que possuímos estão cheias de erros, pois por terem sido copiadas a mão, aqueles que faziam as copias alteravam o texto, seja por erros, seja propositalmente.
Um pouco de informação e sempre útil aqui. Temos mais de 5 mil manuscritos gregos dos primeiros seculos do Novo Testamento. Só para se ter noção da importância desse numero, os 6 mais influentes e importantes livros da antiguidade juntos possuem menos de mil manuscritos. E se acrescentar os manuscritos em outras línguas, temos mais de 25 mil cópias. Eles concordam em 95% do texto, o que já e admirável levando-se em consideração que eram copiados a exaustão. Os 5% discordantes se referem em sua grande maioria à ordem de palavras (Cristo Jesus ao invés de Jesus Cristo, por exemplo) e em nenhum momento essas diferenças possuem qualquer influência sobre doutrinas centrais do cristianismo.
Se somente isso não fosse suficiente, mesmo que não possuíssemos tantos manuscritos seria possível reconstruir todo o Novo Testamento a partir dos textos dos pais da igreja, que citavam constantemente os textos que já eram reconhecidos como Escrituras no primeiro e segundo seculos.
Alega-se no artigo que o texto da mulher adultera do evangelho de João foi inserido por um escriba no seculo 3. O motivo para essa colocação é porque nesse período o cristianismo estava se distanciando do judaísmo, então era importante que eles se distanciassem da lei mosaica, que diz que uma adultera deve ser apedrejada. Não existe prova disso. Esse texto não consta em muitos manuscritos e em outros ele está deslocado, colocado em outro lugar. Mas não somente a parte da mulher adúltera, mas todo o texto anterior, que vai de João 7:53 ate 8:11. É possível que esse texto não faça parte do original, mas não temos prova disso, já que alguns manuscritos trazem esse texto. Também é possível que esse texto fizesse parte de uma tradição oral. Mesmo que esse texto não tenha feito parte do original, o que não temos certeza, não podemos afirmar quando foi inserido nem por quem e muito menos o porque, já que qualquer conclusão nesse sentido é totalmente especulativa. Além disso, existe algo que muitos pesquisidores ignoram (por causa de seu pressuposto): Jesus mesmo afirmou que não veio para destruir a Lei, mas para cumpri-la. Por que então Jesus não deixou que aqueles homens apedrejassem a mulher adultera? Porque a Lei possuiu uma única razão, mostrar o quanto somos pecadores e aqueles homens que queriam apedrejá-la se achavam justos. Quando viram, pela mesma Lei que queriam usar para condenar a mulher, que eram tao pecadores quanto ela, não puderam mais continuar.
A formação do Cânone é normalmente mal representada nas revistas e livros, especialmente aqueles que negam a autoria divina da Bíblia. Via de regra alegam que foi um ato do imperador Constantino no concílio de Nicéia e ali pela primeira vez tivemos a lista dos 27 livros. O artigo da SUPER traz pelo menos uma novidade, a historia de Marcião e como ele editou a primeira versão do Novo Testamento, bastante diferente da nossa. Mas como ele era um gnóstico e o gnosticismo foi declarado heresia em 170 AD, ele foi excomungado.
O cânone cristão foi ganhando forma nos três primeiros seculos e foi autenticado pela igreja como um todo no concílio de Nicéia, mas a lista não era nova e não ficaram decidindo o que deveria ou não entrar arbitrariamente. É importante lembrar que os principais livros já estavam definidos pois a igreja como corpo ia compartilhando uma com a outra os texto que possuíam. Uma das convenções que a igreja adotou muito antes de Nicéia foi que para ser considerado como escritura, o texto deveria ter sido escrito por um apóstolo ou sob a orientação de um. Por isso os quatro evangelhos que conhecemos foram facilmente aceitos. Mateus e João escritos diretamente pelos apóstolos e Lucas e Marcos sob a orientação de um apóstolo (Paulo e Pedro, respectivamente). Atos e as cartas paulinas foram rapidamente adicionadas como Escrituras. Um outro critério era que o texto pretendente a ser considerado inspirado deveria ter sido escrito pouco tempo depois de Cristo. Por isso nenhum escrito depois do primeiro século (ou melhor dizendo, apos a morte dos apóstolos) foi aceito. Já ao final do primeiro século, uma boa parte do cânone cristão já estava definido. E as Escrituras hebraicas sempre fizeram parte desse cânone. E mais uma coisa importante, o gnosticismo não foi declarado heresia somente em 170, na verdade João já combatia essa heresia, como podemos confirmar em 1 João onde diz que todo aquele que nega que Cristo veio em carne não é de Deus. O gnosticismo pregava que Cristo não tinha vindo em carne, porque a carne representa o mau.
Quando o concílio de Nicéia se reuniu em 325, poucas dúvidas haviam sobre quais livros estariam oficialmente no que temos hoje como Novo Testamento. Alias, a principal razão para a convocação do concílio não era nem estabelecer o cânone, mas sim lidar com a questão Ariana, uma heresia que o bispo Ario estava espalhando, dizendo que Cristo havia sido criado por Deus, não sendo eterno como o Pai. Ario foi chamado para explicar sobre essa questão e como não se arrependeu por ensinar heresias, foi excomungado. Ali se criou o credo de Atanásio, uma linda declaração de fé que todo cristão deveria ler ao menos uma vez na vida. Na verdade, a lista com os 27 livros foi definida por Atanásio em 365 e confirmada no concílio de Constantinopla em 381.
A autoria de Paulo sobre um trecho de uma de suas cartas é questionada porque o texto parece ser bem machista e Paulo viveu em uma época que o cristianismo era bastante favorável para com as mulheres. Mais uma vez, a especulação e o pressuposto (sempre ele) definem a autoria de um texto. Duas coisas a considerar: primeiro, Paulo era fariseu antes de se converter e para os fariseus a mulher era menos do que um ser humano. O testemunho de uma mulher, por exemplo valia metade do testemunho de um homem (interessantemente, mesmo sabendo disso, Jesus primeiro apareceu para mulheres quando ressuscitou. E tem gente que diz que a Bíblia e machista...). Segundo, em outros texto Paulo compara a relação Cristo/igreja com a relação marido/esposa sendo homem como Cristo e a mulher como a igreja. O homem tem autoridade sobre a mulher como Cristo tem sobre a igreja e o homem deve amar a mulher como Cristo ama a igreja, a ponto de morrer por ela. Isso e machismo?
Uma questão importante que o texto traz é a questão da tradução e existe uma tendência no texto a dizer que a Bíblia foi traduzida de forma errada ou ao gosto do teólogo de plantão. É verdade que algumas traduções são bastante tendenciosas, mesmo algumas modernas (creio que a maior de todas é a Tradução do Novo Mundo das Testemunhas de Jeová) mas uma coisa é ser tendencioso, outra coisas é buscar ao máximo o verdadeiro significado de um texto. E é aqui que o texto novamente erra (ou age de forma tendenciosa). Um exemplo é a palavra metanóia, que foi traduzida na Vulgata como penitência e que Lutero traduziu como arrependimento (reviravolta no artigo da SUPER). Etimologicamente falando, metanóia quer dizer “voltar atrás”, “mudança de caminho ou de oponião”. Ela sempre teve essa conotação nos escritos da antiguidade. Traduzi-la por arrependimento (ou mesmo reviravolta) faz mais sentido se observarmos a raiz da palavra e o conjunto dos ensinos do Novo Testamento do que a palavra penitência. O grande William Tyndale traduziu a palavra ecclesia por congregação, ao invés de igreja e segundo o artigo foi queimado por isso. Na verdade, o fato de ter feito a tradução foi o que o levou para a fogueira, pois isso era totalmente proibido. Ecclesia pode ser traduzida tanto por igreja quanto por congregação, já que possuem o mesmo significado. Ecclesia quer dizer ajuntamento de pessoas, reunião, aqueles que são chamados para se unirem. Aproveitando, pesquisem sobre Tyndale, a historia desse cristão é fantástica!
O artigo termina com o questionamento sobre como devemos traduzir a Bíblia e como devemos lê-la. Devemos seguir o literalismo e voltar as antigas práticas do VT ou devemos ter uma visão mais alegórica, como um livro sobre a jornada do homem em busca de Deus? O que vai definir a minha abordagem das Escrituras é a minha crença sobre sua inspiração. Se a Bíblia é a palavra de Deus para o homem, na qual ele se revela e revela sua vontade para todo nos, então, eu vou lê-la como um todo e como um todo obedecê-la. Isso quer dizer que devo sair por ai apedrejando adúlteras? Não, isso quer dizer duas coisas: primeiro, eu não vou ficar pensando “o que esse texto quer dizer para mim”, não, já que a Bíblia é a revelação de Deus para o homem eu vou lê-la e buscar entender o que o texto significa para seu autor. O que Deus quis dizer naquele texto? Como os leitores originais entendiam esse texto? É assim que eu devo entendê-lo. Isso é regra de hermenêutica numero 1. Segundo, estamos sob uma nova aliança e todo o Velho Testamento deve ser interpretado através do Novo. Cristo cumpriu a Lei por nós, por isso não estamos atrelados a ela. Precisamos ter nossa soteriologia bem definida para poder ler as Escrituras e fazer o que ela diz. Minha sugestão, compre um bom livro de hermenêutica. Vai ter fazer maravilhas.
Tenho a mais absoluta certeza que esse não é o ultimo artigo a atacar a autoria divina das Escrituras. Periodicamente vamos ser abordados sobre isso, especialmente aqueles que compartilham sua fé e fazem evangelismo nas ruas. Mas é importante que estejamos prontos para dar a razão de nossa fé e estejamos preparados, pois não cremos em um conto de fadas sem fundamentos, mas sim em um Deus que se revelou para a humanidade através das Escrituras. Meu irmão, tenha certeza que a Bíblia é a palavra de Deus.
Espero sinceramente que esse post tenha ajudado.